#PUBLICAÇÕES

Cidade Partida – Travessia

da visão privilegiada das janelas

do meu ateliê, foi nascendo

cidade

que o tempo leva, que o tempo traz

 

cidade em zoom

dentro de minúscula visagem:
  • a exatidão do modelo real impondo o que em sua natureza é mudança no fluxo natural do tempo
  • universo impenetrável de milhares de janelas
sem tempo para abrir ou fechar senão o do próprio tempo de cada um, tempo incontrolável – dividido

em reduções e ampliações

em descaminhos,

buscando rastros de roteiros – minúcias, ângulos, imperfeições, vazios, silêncios em busca de voz e sentido

 

tempo foi guia pelas muitas janelas

entreabertas, fechadas, abertas,

e as mãos  tateando partes,

juntaram os  passos

 

por recônditos

vieses

pelas frestas

 

da cidade da infância

da memória

do quintal da casa antiga na floresta

à cidade presente

noturna

partida

 

nessa travessia

 

(Márcia Guimarães)
 
 

Cidade Partida – Travessia surgiu da visão privilegiada das janelas do meu atelier na Floresta, bairro em que nasci e vivi durante muitos anos. Lá até hoje ainda mantenho o meu local de trabalho.

A primeira imagem registrada foi da pequena cidade que eu via através das janelas, os muros do quintal, as casas antigas, a igreja e os prédios que surgiram em seu entorno. O antigo e o novo acontecendo, se integrando no espaço urbano, não como um fato isolado; na cidade inteira era possível perceber o mesmo movimento transformador. Nada acabava, nada começava. O que existia era um movimento de integração constante e irreversível, formando um complexo ao mesmo tempo organizado e desorganizado cuja linguagem traduzia a cidade nova e partida.

Olhando esta primeira imagem, senti que precisava atravessá-la, pela carga afetiva que trazia e pelo simbolismo do processo de passagem – registro de um momento de vida para outro, da transformação da cidade pequena em cidade grande – e esta passagem era irreversível.

Fiz uma janelinha de papel e brinquei com ela em cima do desenho original, observando as imagens que iam surgindo, pequenas porções que lembravam muitos pontos da cidade. Realizei oitenta e cinco reduções, que formaram um painel horizontal 2,83 cm: registro gráfico do que eu havia absorvido através do tempo e sintetizava. Foi a minha maneira de ocupar aquele espaço, realizando o pensamento final e o olhar de forma livre e perceptiva, em um mesmo plano, sem fugir das mudanças impostas pelo tempo, que causava impacto e estranheza.

Olhava e lia com os olhos o que eu tinha feito, sentindo que ainda não estava pronto; havia muito a ser dito. Comecei então a ampliar parte das minhas reduções em diferentes formatos que resultaram em 97 desenhos montados em 45 quadros, alguns com fundo branco e outros com fundo preto. Eram portas e janelas que se abriam aos meus olhos, mostrando ângulos, imperfeições e detalhes do tempo, da falta de tempo e das suas imposições.

Descobri uma cidade rica, cheia de detalhes sugestivos, onde me sentia à deriva, vivendo e criando situações, deslocando os espaços reais de um lugar para outro, aliando tensões, cujo fio condutor era a vida, onde a história acontece.

Criei a minha própria poética da cidade, aliando o antigo e o novo, que às vezes casavam suas diferenças com perfeição, expressando a nova fisionomia da cidade. A memória do momento do fazer me leva a pensar que eu também estava tentando ultrapassar fronteiras dentro do meu próprio trabalho e do meu desenho, ao trabalhar o espaço despedaçado que se estabelecia através da minha história e da história do lugar.

As ampliações que fiz em seguida também partiram das reduções, recortes dos recortes, mostrando a luz invadindo tudo, se infiltrando entre as casas e prédios, um pedaço de céu e de montanha, o ar circulando no espaço e criando seu próprio caminho. Foi o registrar repetitivo de imagens e de significados.

Foram quatro anos de trabalho em que parti da superfície do que eu via e fui mergulhando aos poucos na memória do lugar e do seu entorno, utilizando a linguagem do desenho para registrar as imagens da realidade em constante transformação, usando o olhar, o tempo histórico e a minha história pessoal. As questões se entrelaçaram de tal forma que separar o que é real, imaginário ou pessoal, tornou-se impossível. Uma longa “TRAVESSIA”, objeto de muitos olhares, tentando desvendar as mudanças em curso e a transição permanente.

 Trabalho realizado a nanquim e bico de pena sobre papel Fabriano, iniciado em 2000 e finalizado em 2004