Adoro desenhar. Enquanto desenho, as coisas vêm e vão à minha cabeça. Vou ruminando o que vou fazer no dia seguinte, no mês seguinte, no ano seguinte. Penso nos trabalhos começados e que rumo dar a eles. Alguns permanecem. Foi assim que voltei a um trabalho que me chamava. Iniciado, mas ainda em espera.
Tinha algumas pranchas prontas e a idéia formulada anteriormente, mas faltava pensar mais e desenvolver. Queria fazer um questionamento do espaço, da opressão gerada pela ocupação e da instabilidade das relações neste universo. Somos sujeitos sociais e não há como fugir do sistema em que vivemos, reproduzimos e relacionamos.
Pensei em uma pauta onde a letra de uma música é escrita. Risquei, gostei, não gostei. Era aquilo, mas não era exatamente aquilo. Faltava um lugar para os meus pequenos seres que eram parte expressiva do trabalho. Resolvi usar a idéia da pauta, mas abandonei a precisão. Dividi a folha considerando os espaços como lugares do embate diário e de circulação trabalhando exaustivamente com a repetição que funcionou como observação da rotina humana.
Enquanto desenhava, lembrava-me o tempo inteiro de uma fala que ouvi de um índio em um documentário sobre beleza e simetria e que nunca esqueci. “A rotina nos dá a medida exata daquilo que a vida é”. Sentado em uma pedra no Grand Canyon, fumando um cachimbo, o cavalo amarrado em uma árvore próxima, chefe da tribo dona das terras, vivendo a vida que escolhera, determinando a sua própria medida. Achei a fala do índio fantástica.
Fui ocupando os espaços de cada um dos papéis riscados, a nanquim e bico de pena. Escolhi o amarelo e com ele fui criando as outras cores. Amarelo com um pingo de vermelho, com dois pingos de vermelho, uma pitada de preto, branco, ocre, mas a base amarela permaneceu ao longo do trabalho.
Fiz uma série vertical e outra horizontal. Acabei esta parte e risquei outras pranchas, observando a minha pauta e cortando-a em seguida em diversos pedaços. Corto, divido e multiplico o papel que eu uso. Tanto o papel em si, como o trabalho, que depois de dividido sempre se multiplica.
A série ainda estava em processo, mas ainda incompleta e o uso da repetição e da serialidade tinha disciplina e ordem, refletindo o caos sem ser um caos. Comecei a pensar nos meus pequenos seres empilhados em caixas. Pensei nas caixas e em criar um imenso painel com elas. Adoro ir desdobrando as ideias.
Comprei compulsivamente uma montanha de caixas de fósforos em diferentes tamanhos e formatos, mas descobri rapidinho que elas não se prestavam ao que eu pretendia. Entortavam a cada camada de tinta e por mais que eu tentasse, não conseguia encontrar uma solução. Optei então por trabalhar com caixas de madeira em quatro tamanhos diferentes.
Encomendei cinquenta e cinco caixas de cada um desses tamanhos. Pintei as caixas interna e externamente de branco. A minha intenção inicial era trabalhar diretamente nas caixas, mas não deu certo. Cortei papel considerando o tamanho interno das caixas, risquei, desenhei, pintei e colei. Comecei a pensar que o fundo, espaço externo das caixas, era muito interessante e passei a usá-los.
Fiz então quinze cubos de madeira, também pintados de branco, e trabalhei externamente em cada um deles. Já conseguia ver mentalmente as caixas e os cubos montados aleatoriamente sobre uma mesa, sofrendo interferência de quem os observasse. Entretanto, ao serem expostos tal fato não aconteceu. Observei que as pessoas tinham certo constrangimento em interagir com o trabalho sem permissão. Foi necessária a colocação de um convite formal com as seguintes palavras: “Pare, olhe e toque”! Não se intimide pelas obras, elas estão em constante construção. “Convidamos você, visitante, para dar forma a estes trabalhos”. A participação que eu tanto queria, começou então a acontecer, e foi incrível observar as pessoas interagindo com o trabalho, emitindo opiniões e dando sugestões.
Um quebra-cabeça feito com peças pequenas que poderia ficar em cima de uma mesa, sobre um tablado raso proporcional ao tamanho das peças, onde elas poderiam se movimentar, começou a voar dentro da minha cabeça. Poderia usar algumas caixas menores, mas acabei optando por quadradinhos de madeira.
Estava sempre imaginando os meus pequenos seres se movimentando. Em torno dos outros, de si mesmos, ocupando espaços, trocando de lugar uns com os outros, subindo, descendo, tentando ocupar o mesmo espaço, se atropelando, perdendo espaço, ganhando outro ou recuperando o anterior. Eles poderiam andar em uma corda. Poderiam muitas coisas.
Resolvi desenhar um Flipbook. Cortei papel, risquei, desenhei, pintei, fotografei e escaneei. Transformei-os em uma animação. Finalmente eles eram capazes de fazer tudo aquilo que os imaginei realizando. Subiam, desciam, ocupavam espaços, perdiam espaços, se empilhavam, amontoavam, se estranhando, se acotovelando, refletindo a possibilidade de equilíbrio, de distanciamento emocional e o desgaste das relações gerado pela proximidade excessiva.
A última coisa que fiz foi um caderno onde registrei as minhas impressões, convidando as pessoas a deixarem ali as suas próprias impressões.
“Espaço, Relacionamento e Ocupação” é um projeto que eu acabei e não acabei. Ainda tenho coisas a dizer. Não sei se tenho coisas a acrescentar ao trabalho em si ou se não consegui esgotar o assunto como desejava. Será mesmo que os assuntos se esgotam ou é a gente que acaba ficando cansada deles?
Márcia Guimarães
Março de 2017